A criação da Comissão de Mulheres com Deficiência de Campo Grande trouxe visibilidade à luta que reivindica inclusão e igualdade social. De acordo com o Censo do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, 26,5% da população feminina brasileira tem algum tipo de deficiência, e destas 62,5% tem deficiência física. A maioria não tem acesso assegurado nas unidades públicas de saúde, escolas e no mercado de trabalho. A coordenadora da Comissão, Mirella Tosta, destaca que a luta para garantir seus direitos e alcançar a igualdade é incansável. “Lutamos e vamos continuar lutando, porque, afinal, se cabem eles [pessoas sem deficiência] cabemos nós”.
A saúde
Para cuidar da saúde de mulheres com deficiência física, o atendimento público requer equipamentos adaptados e qualificação profissional. Segundo a advogada Tatiana Garcia, a capital carece de ambos. As unidades públicas de saúde não têm macas e outros aparelhos médicos adequados para realizar os exames da pessoa com deficiência física de forma efetiva. “Os aparelhos fornecidos para a rede pública muitas vezes têm um tamanho padrão e não atendem às necessidades das mulheres cadeirantes, e isto dificulta na hora de fazer a consulta ginecológica e a mamografia”.
De acordo com a advogada, a principal reivindicação dessas mulheres é unânime, uma unidade de saúde totalmente adaptada para realizarem suas consultas e exames médicos. Mirella Tosta relata que teve que optar pelo atendimento privado, e mesmo assim não foi atendida adequadamente. “Eu fui fazer o exame e não sabiam como me colocar na maca, porque tinha uma escada e eu não tenho como subir sozinha, então chamaram o segurança do hospital e ele me carregou. Foi um absurdo, as pessoas não tem sensibilidade. A partir daí eu decidi reivindicar ainda mais os meus direitos”.
Para Tatiana Garcia, essas reivindicações são essenciais para haver um resultado mais rápido. “A acessibilidade à unidades de saúde é um direito. É amparada por lei. Essas mulheres devem expor as problemáticas em audiências públicas, para que tenham voz diante de outros setores da sociedade”.
A acadêmica de Educação Física Lis Loureiro, afirma que enfrentou situações parecidas com a da colega Mirella Tosta. “Os profissionais da área da saúde não estão capacitados para atender mulheres com deficiência. Aconteceu de eu precisar fazer um exame preventivo e não conseguir ou ser mal atendida”.
A sexualidade e os padrões de beleza
O despreparo de profissionais de saúde ao tratarem da sexualidade de mulheres com deficiência física pode ser encarado como consequência do tabu em relação ao tema. Lis Loureiro relata ser comum encontrar pessoas que não encaram a vida sexual de um deficiente com naturalidade. De acordo com ela, alguns médicos não realizam os exames preventivos por entenderem que a deficiência física impede as relações sexuais. Ela afirma que para muitas pessoas é difícil imaginar um deficiente em um relacionamento. “A sociedade acha que por você ser deficiente, você não tem uma vida amorosa ativa, não faz sexo, não se relaciona”.
Segundo a recepcionista Rosa Maria Santos, muitas pessoas fazem perguntas indelicadas a respeito de sua vida sexual. “As pessoas perguntam se eu tenho uma vida sexual ativa. Às vezes quando não têm coragem de perguntar para mim, perguntam para o meu marido”. Ela diz que essas perguntas poderiam ser evitadas se a sociedade tivesse acesso às informações apropriadas que tratassem deste tabu.
Lis Loureiro ressalta que existe uma relação entre o preconceito sobre a sexualidade da mulher com deficiência e o padrão de beleza. “Muitas pessoas consideradas normais para o padrão de beleza imposto não assumem interesse em alguém com deficiência, porque não existe um padrão para uma deficiente, ela está fora do padrão”.
Lis Loureiro afirma que muitas mulheres desistem de ter um relacionamento por sentirem-se inferiores às outras pessoas. Dentro do discurso que questiona os padrões impostos, a deficiência física não é discutida, e isso contribui para a baixa autoestima dessas mulheres. “Quando a gente fala de diversidade, a gente fala sobre todos os tipos, mas ninguém fala da mulher deficiente”.
A educação e o preconceito
Para a criança com deficiência, o suporte da família é um dos principais fatores que ajudam a desenvolver a autoestima para o convívio social. A educação sobre as diferenças e preconceitos devem ser ensinadas, principalmente, no lugar em que a criança estabelece seus primeiros vínculos sociais, o ambiente familiar.
A acadêmica de Jornalismo Sarah Santos, evidencia que a família é como uma base de construção de confiança para a criança deficiente. “A minha mãe e o meu pai também são deficientes e eles sempre foram uma inspiração para mim, eles sempre me colocaram de frente para o mundo. Não tinha superproteção, eles me explicavam o que podia acontecer e me prepararam para enfrentar”.
Segundo Lis Loureiro, a orientação de pessoas com quem a criança tem vínculos afetivos mais fortes é importante, mas é preciso evitar a superproteção. “Minha família sempre me tratou normalmente. Eu acho que superproteger uma criança pode implicar no desenvolvimento social”. A superproteção pode trazer implicações psicológicas e a família deve saber até onde agir e intervir ao preparar seus filhos para o convívio na escola, lugar que inicialmente contribui para o desenvolvimento social da criança com deficiência física. A escola deve assumir a responsabilidade de incluir esta criança nas relações sociais.
A inclusão no ambiente escolar vai além da acessibilidade ao espaço físico. É preciso que o corpo docente tenha sensibilidade ao lidar com a criança e, consequentemente, seu convívio entre os colegas. Lis Loureiro afirma que a falta de capacitação dos profissionais que recebem esses alunos e o desconhecimento das outras crianças da classe sobre a deficiência geram experiências desagradáveis. “Quando eu fui para a escola, eu sofri muito. As crianças perguntavam o que eu tinha e eu como criança não sabia explicar. Eu usava um aparelho para me locomover e as crianças me chamavam de robocop e me batiam. O preconceito existe, é real e a criança não está preparada para isso, para mim foi um trauma”.
A professora Susy Ferro relata que alguns profissionais não estimulam o debate sobre a questão das diferenças existentes na sociedade, e a falta de informação entre os alunos em relação à deficiência leva à prática de preconceito e bullying. “Eu procuro advertir sobre tal atitude, mas acredito que a nossa classe ainda precisa se aprimorar sobre alguns assuntos e trazê-los para a sala de aula, promovendo discussões, assim como as famílias devem ensinar a respeito das diferenças e o Estado contribuir para a formação dos profissionais da área”.
Sarah Santos comenta que não foi vítima de bullying, mas sofria preconceito pela exclusão social. “Apesar de eu não ter sofrido preconceito diretamente, eu não era incluída em algumas atividades da turma. Era como se eu não pudesse ter destaque nenhum por ser deficiente”. Ela ressalta que os professores não eram capacitados para lidar com este tipo de situação. “Eles tinham conhecimento do que acontecia e não se posicionavam. Eles fingiam que não existia a exclusão. Faltam professores para falar sobre isso”.
Para a acadêmica de Educação Física Adriana Rolon, o preconceito e as dificuldades que as deficientes enfrentam na escola estendem-se também ao ambiente universitário. “Foi muito difícil eu conseguir ser aceita na escola e agora na universidade passei pelo mesmo processo, principalmente, porque faço Educação Física em uma cadeira de rodas. Os professores também não souberam como me adequar à turma”. Adriana Rolon afirma que apesar da falta de capacitação, seus professores procuram aprender sobre a deficiência por meio da vivência em sala de aula.
A acessibilidade
A acessibilidade da pessoa com deficiência vai além de estruturas físicas adaptadas, como rampas e elevadores, depende também de capacitações de profissionais da área de ensino e saúde, inserção no mercado de trabalho e informação adequada à população sobre os direitos e necessidades dos deficientes. Para Mirella Tosta, acessibilidade significa tornar possível a essas pessoas o acesso aos mesmos bens e serviços disponíveis para os demais cidadãos. “Nós pagamos impostos e temos direitos como qualquer outra pessoa”.
A advogada Tatiana Garcia explica que a acessibilidade tem de ser pensada desde o momento em que a deficiente física sai de casa. “Não adianta o órgão público, por exemplo, ter rampa e corrimão se não temos um transporte coletivo adaptado adequadamente, precisamos pensar a acessibilidade desde quando a mulher sai do seu lar e chega ao local desejado, seja uma unidade de saúde, uma escola ou qualquer outro lugar”.
Tatiana Garcia evidencia que por falta de informação sobre a deficiência, lugares públicos da cidade, como praças, parques e até mesmo as calçadas, não foram construídos com acessibilidade. "As pessoas entendem que a mulher deficiente necessita de um acompanhante para carregá-la ou empurrá-la. As limitações físicas não são motivo para que isto aconteça". Mirella Tosta declara que nasceu com a síndrome dos ossos de cristal, a osteogênese imperfeita, tem 82 fraturas e por isso tem receio que as pessoas a ajudem a locomover-se com a cadeira de rodas nos lugares sem acesso ao deficiente. “Eu já tenho muitas fraturas, não posso me dar ao luxo de deixar que qualquer pessoa empurre a minha cadeira de rodas, eu posso sofrer muito se alguém me deixar cair. Os lugares tem que estar adequados a mim e não sou eu que tenho que me adequar a eles”.
“Os lugares tem que estar adequados a mim e não sou eu que tenho que me adequar a eles”. Janela
A ausência de informação também implica na inserção da mulher com deficiência física no mercado de trabalho. As empresas devem assegurar que seus estabelecimentos tenham acessibilidade para que a mulher deficiente consiga exercer as funções laborais. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2014, a participação de pessoas com deficiência na população economicamente ativa entre 16 a 64 anos é de 56,4% entre homens e 43,1% entre mulheres. Rosa Maria Santos declara que quando estava desempregada fez treinamento em uma empresa privada e não foi contratada por causa de sua deficiência física. “Eu fiz todo o treinamento, foi difícil para mim porque o local não era adaptado, tinha coisas que eu não conseguia fazer e eles colocaram todos os tipos de obstáculos para provar que eu não conseguiria trabalhar ali”.
Os direitos (Fotos das conferências)
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), aprovada em junho no Senado, foi considerada símbolo de conquista pelas mulheres deficientes que lutam diariamente por seus direitos. O artigo 8º da lei estabelece que é dever do Estado, da sociedade e da família assegurar os direitos referentes à vida, saúde, sexualidade, alimentação, habitação, educação, entre outros.
Durante a Conferência Livre de Mulheres com Deficiência de Campo Grande, que aconteceu em outubro, os principais problemas apontados foram a dificuldade do ingresso no mercado de trabalho, adaptação de unidades básicas de saúde e a falta de informação da população em relação aos direitos da pessoa com deficiência. Os apontamentos fazem referência a violações da LBI, que prevê às deficientes físicas o trabalho em ambiente acessível, além de espaços de serviços de saúde que assegurem o acesso e sistema educacional inclusivo.
A Conferência foi realizada pela Subsecretaria de Politicas para Mulheres de Mato Grosso do Sul (SPPM/MS) com o objetivo de garantir que esses direitos sejam respeitados e dar voz e visibilidade à luta dessas mulheres. As propostas foram elaboradas segundo as demandas apresentadas, e estas serão encaminhadas e discutidas na IV Conferência Estadual de Políticas para Mulheres em novembro.
As conferências são espaços de participação democrática, que permitem a essas mulheres exercer seus direitos em busca da igualdade social. A superintendente da SPPM/MS, Luciana Azambuja, ressalta que é o momento proporcionado para o debate e elaboração de propostas para efetivar e aperfeiçoar as políticas públicas e a aplicação das leis que normatizam a promoção e a defesa dos direitos. “Por meio da participação dos Conselhos dos Direitos da Mulher e dos movimentos feministas e de mulheres, bem como de mulheres de todos os grupos e segmentos da sociedade, surgem as demandas, que a partir das discussões podem ser transformadas em políticas públicas”.
A técnica da SPPM/MS Nancideide Gonçalves, afirma que as propostas podem sensibilizar outros parceiros da Subsecretaria, como o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o que ajuda na luta pela inclusão de mulheres deficientes no mercado de trabalho. “Outra riqueza que decorreu da Conferência foi a sensibilização de outros parceiros, isso ajuda a chamar atenção também das empresas privadas que podem contratar essas mulheres”.
A realização de conferências, audiências e debates para discutir os direitos da mulher com deficiência tornou-se possível também devido à união de 29 mulheres que formam a Comissão de Mulheres com Deficiência de Campo Grande.
A Comissão
A Comissão de Mulheres com Deficiência de Campo Grande foi idealizada em março de 2015, com o objetivo de lutar pelos direitos básicos de acessibilidade das mulheres deficientes. A ideia surgiu durante o 1º Encontro de Mulheres com Deficiência Física e Mirella Tosta, atual coordenadora da Comissão, foi quem tomou a iniciativa para que a organização saísse do papel. “Parece que nós somos invisíveis. Com a Comissão, as pessoas estão nos enxergando ou pelo menos estão sendo obrigadas a nos enxergar. Estamos conquistando nosso espaço, algo que muitas mulheres talvez nem soubessem que tinham”.
A primeira reunião aconteceu no dia 09 de abril, e aos poucos mais mulheres aderiram à causa. A Comissão é formada por 29 mulheres, e além do apoio do Governo do Estado e da Prefeitura de Campo Grande, também recebe ajuda de advogados, psicólogos, jornalistas e outros colaboradores. Após algumas conferências, com a ajuda da advogada Tatiana Garcia, foi realizada a primeira audiência pública das demandas da Comissão. “A ideia das audiências públicas surgiu para tentar conscientizar as pessoas de que, se trabalharmos em conjunto, conseguimos um resultado mais efetivo. Então, com participação do judiciário, representantes da sociedade civil organizada, gestores e corpo clínico, as mulheres têm oportunidade de apresentar suas demandas. Depois, essas demandas são encaminhadas ao poder público”. As reuniões da Comissão acontecem, pelo menos, uma vez por mês.
Tatiana Garcia conheceu a Comissão logo após sua idealização, em abril, no Simpósio de Direitos Humanos e Políticas Públicas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A advogada explica que, atualmente, o que está em andamento é a busca por uma unidade pública de saúde adaptada e que possa ser referência no atendimento a essas mulheres. Ela ressalta que a luta não é por um espaço exclusivo de atendimento, e sim por uma inclusão da mulher deficiente. Além desta demanda, outras pautas também são avaliadas e discutidas pela Comissão, como a questão do transporte coletivo, educação, acessibilidade nos espaços físicos, entre outros. “Quanto mais unidas elas estiverem, mais terão força e voz”.
Sarah Santos é uma das participantes mais jovens da Comissão. Foi por insistência da mãe, Rosa Maria Santos, que ela resolveu juntar-se a essas mulheres. Ela relata que era militante feminista e percebeu que, muitas vezes, o feminismo não abordava as pautas das mulheres deficientes. “Eu nunca tive problemas em lidar com minha deficiência, mas muitas mulheres mal saem de casa porque não têm mobilidade. Muitas ainda nem têm conhecimento de que existe a Comissão. Então, participar dela foi primordial para abrir caminhos”.
Quatro das mulheres que fazem parte da Comissão compartilharam suas histórias de vida, que envolvem os preconceitos e tabus relacionados à deficiência física, reivindicações por seus direitos, conquistas e suas superações e empoderamento. Mirella Tosta, Lis Loureiro, Rosa Maria Santos e Sarah Santos fazem parte também de um universo de mulheres que vivem a luta cotidiana pela busca da igualdade social.