Um dos componentes do cenário musical de Campo Grande encerrou seu ciclo no início deste ano. O Hangar Live Music, ou simplesmente Hangar para os mais chegados, fechou as portas oficialmente no dia 21 de janeiro, quando a fanpage da casa de shows anunciou o fechamento. O Hangar estava em atividade há apenas quatro anos, mas, para os frequentadores, parecia muito mais que isso. Apesar dos proprietários Thiago Coutinho e Nivaldo Saito afirmarem que o fechamento não foi por motivo financeiro ou falta de público, tal episódio levanta questionamentos sobre a situação do atual cenário musical de Campo Grande.
Nesses quatro anos de existência, o Hangar conseguiu conquistar sua clientela, apostando sempre em artistas independentes. A repercussão desse fato na noite campo-grandense é visível: significa que há menos um local para se divertir e, principalmente, menos um local para o público que foge do sertanejo e para as bandas que apostam no rock autoral.
Quem faz a música?
Gêneros como chamamé, guarânia e sertanejo se destacam como parte característica da cultura musical de Campo Grande. O chamamé e a guarânia são estilos muito próximos e com forte influência paraguaia, principalmente da polca paraguaia. Sua popularidade pode ser explicada pela localização geográfica. Na fronteira com o Paraguai, Mato Grosso do Sul acabou sendo influenciado em vários aspectos.
A música sertaneja de raiz e suas várias modalidades é considerada a vitrine do Estado. A quantidade de artistas do gênero que despontam nacionalmente gera grande referência popular. Apesar desse ponto forte na região, outros gêneros musicais, como o rock, a MPB e o samba, têm sua participação significativa no cenário musical da cidade e representam um público que busca outras opções de entretenimento.
De acordo com o artigo “A música regional urbana de Mato Grosso do Sul”, publicado pelo Prof. Dr. Gilmar de Lima Caetano, o processo de redefinição musical aconteceu a partir de experimentações com uma linguagem pop das últimas décadas do século XX.
[Citação em destaque] “A característica fundamental dessa produção, gestada desde os Festivais de Música Popular de Campo Grande, entre os anos de 1968 e 1972, foi a fusão de elementos universais da música pop (rock, blues, folk, jazz, bossa nova, etc.), amplamente difundidos através de grandes veículos de comunicação (TV, rádio, cinema, imprensa escrita, etc.), com informações inerentes à linguagem musical dos países platinos, especialmente do Paraguai (polca paraguaia, guarânia e chamamé).”
Gilmar Lima Cateano – A música regional urbana de Mato Grosso do Sul
Artigo publicado na Revista NUPEM, Campo Mourão, v. 4, n. 6, jan./jul. 2012
Não podemos falar de música em Campo Grande sem falar da família Espíndola. Os irmãos Tetê, Alzira, Geraldo, Sérgio, Celito e Jerry, com exceção do artista plástico Humberto, formam o sobrenome mais popular da música regional. O primeiro a introduzir-se na música e aprender a tocar violão foi Sérgio, que ensinou a Geraldo, que por sua vez ensinou à caçula. Em 1968, Tetê, Geraldo, Celito, Sérgio e Alzira formaram o grupo LuzAzul que, mais tarde, virou Tetê e o Lírio Selvagem, após fecharem contrato com gravadora.
Jerry é o mais novo dos Espíndola e, desde pequeno, acompanhou a vida dos irmãos no mundo da música, mas afirma que não esperava que fosse seguir os mesmos passos. “Eu achava que ia ser jogador de futebol. De repente, eu me apaixonei por uma música e quis tocar no violão de qualquer jeito, e aí então começou. Não consegui mais parar”.
Em 1982, com apenas 18 anos, foi convidado por Paulo Simões para fazer uma participação em seu show. No seguinte, mudou-se para São Paulo e durante nove anos foi vocalista da banda de rock Incontroláveis, que integrou a cena vanguarda paulistana e o movimento do rock brasileiro. “Eu costumo dizer que minha faculdade de música foi essa banda. Aprendi muito com meus parceiros. Era uma época muito legal da música brasileira, um período que o rock despontava, e em São Paulo nós tínhamos oportunidade tocar em muitos lugares. O público acompanhava também, fazíamos shows em que chegava a 500 pagantes”.
Em 1992, regressou a Campo Grande, onde começou a retomar suas raízes. “Voltei a tocar violão e fui influenciado pelas batidas que temos aqui na fronteira, como o chamamé e a polca”. Jerry então juntou-se à banda Croa e foi aí que surgiu a chamada polca-rock, um estilo baseado em ritmos fronteiriços. O músico considera este trabalho o mais importante de sua carreira. Atualmente está com a banda Barbados e com o projeto Hermanos Irmãos em parceria com Márcio de Camillo e Rodrigo Teixeira.
Jerry considera o cenário atual da música tão bom quanto na época em que começou a carreira. “Eu acho que Campo Grande e Mato Grosso do Sul têm uma música muito forte. Nós temos uma música diferente da música do Brasil”. Para ele, o crescimento da cidade contribuiu para o desenvolvimento da música regional, trazendo um estilo mais urbano e moderno. “Essa galera mais jovem está trazendo muita qualidade para a cena. “Acho que a nossa música é uma das músicas de maior qualidade do país. Azar do Brasil que não descobriu”.
O músico acredita que as dificuldades do cenário musical estão não apenas em Campo Grande, mas no Brasil todo. “Não só pelo momento, mas pela quantidade de artistas que se tem hoje, eu acho que a gente não tem espaço suficiente. Tá difícil de fazer música no Brasil e o cara que quer ser artista tem que fazer pirueta”.
Outro nome que aparece na história da música de Campo Grande é Guga Borba. Com 25 anos de estrada, Borba começou a se interessar pela música muito jovem. Aos 13 anos, aprendeu a tocar com o irmão que era tecladista da banda de rock Minhoca na Cabeça. Começou a participar dos ensaios e dos shows e a ajudar na produção. Logo depois formou a banda Inverno Russo junto com amigos que hoje fazem parte da Naip. “Foi na Inverno Russo que comecei a desenvolver na música, tocar e querer compor”.
Após a Inverno Russo, formou a banda de country rock Belladona em São Paulo e assinou com a gravadora Warner Music. Foi com a volta de Borba a Campo Grande que surgiu a Naip e o duo Filho dos Livros. “O Filho dos Livres foi realmente um momento muito importante da nossa carreira porque conseguimos andar com nossas composições, nossa arte, com as influências que sentimos dos artistas daqui e de fora”.
Após dez anos de separação da banda Naip, em 2012 voltaram aos palcos. “Ficamos quatro anos pegando fogo no rock e fazendo um trabalho autoral muito bacana, alinhando a essas releituras que fazemos de bandas grunges”. Agora, Borba tem planos de se dedicar apenas à carreira solo, que vinha acontecendo em paralelo à Naip. “É muito diferente de trabalhar com banda. Você está mais ácido dentro de si mesmo, colocando aquilo que você sente sem nenhuma barreira, é muito mais intuitivo”.
[Citação em destaque] “Toda vez que falamos de trabalho autoral é sentar e compor algo do silêncio. É preencher o silêncio com o que a gente pensa, com os nossos sentimentos, com a nossa musicalidade e as influências que a gente teve. É muito prazeroso poder, aos 40 anos de idade, estar aqui fazendo esse trabalho de uma maneira respeitosa. Eu acho que o respeito às pessoas que estão ali para absorver essa musicalidade, essa poesia, é o que mais me interessa. Eu sou apaixonado por esse trabalho, gosto muito de fazer e pretendo fazer até o final da minha vida. ”
Guga Borba, 40 anos, ex-vocalista da banda Naip
Para o músico, o cenário musical evoluiu muito e por todos os lados. “Nós temos o reconhecimento nacional pela música sertaneja de Campo Grande, mas temos também o outro lado. Música instrumental, rock, clássica, erudito, samba, forró. Tem muita gente bacana aqui, e não só em Campo Grande, mas em todo o Estado. É um grande celeiro de artistas bons, dedicados e talentosos”. Apesar de existir uma boa diversidade, Borba acredita que ainda falta espaço para o novo.
Segundo ele, é necessário ressaltar que a música não envolve apenas o músico em si. Hoje existem equipes especializadas em festivais e em vendas de shows, existem as equipes técnicas que envolvem iluminação, som e palco, e todo um cenário em volta da música, que não se resume ao artista. “O artista é parte importante, mas é sempre importante valorizar que existe gente em volta do artista”.
Dentre os grandes nomes com anos de carreira, o rock regional também é representado pelos músicos jovens. O cenário ganha força com as novas apostas musicais e, uma delas, é a banda Codinome Winchester, que começou a se apresentar oficialmente no fim de 2013. A banda, que começou tocando covers, hoje possui dois EPs lançados, 10% Alien e Ocasiões Espaciais.
A influência musical do vocalista Fillipe Saldanha vem de família. “Meu pai era músico profissional, já tocou com Ed Motta e Jorge Ben Jor, e eu também conheço muitos músicos. O samba e o rock dos anos 60 e 70 me chamaram a atenção e aí decidi estudar mais. Estudar os movimentos, as evoluções do mundo digital e toda essa mistura”.
O atual vocalista, quando começou na música, costumava ser baterista. Saldanha ainda toca bateria ocasionalmente e em uma banda que mantém paralelamente à Winchester, A Insana Corte. “Eu sempre gostei de cantar e sempre gostei de tocar bateria, tinha bandas em que cantava e tocava bateria ao mesmo tempo. A questão é que eu me saio muito bem na comunicação. As pessoas gostam de assistir o show porque eu falo com elas, valorizo as pessoas. E isso que é importante, você valorizá-las, não achar que você é melhor que ninguém”.
[Citação em destaque] “Eu acho que dá para ganhar dinheiro com música, sim. Os meus companheiros de equipe e eu acreditamos nisso. É o que a gente gosta. Temos quem nos apoie até conseguirmos ganhar dinheiro de verdade e acredito que estamos quase lá.”
Fillipe Saldanha, 22 anos, vocalista da Codinome Winchester
Bèget de Lucena, ou apenas Bèget, é mais um nome que virou referência quando falamos de jovens músicos de Campo Grande. O interesse pela música veio cedo, aos 11 anos idade, quando começou a tocar e cantar em corais de igreja. “Descobri que eu tinha uma ligação com a música que ia muito mais além do que só gostar”. Com 15 anos, compôs sua primeira música e, três anos depois, começou a tocar em saraus e pela noite campo-grandense. Foi no final de 2011 que surgiu a Santo Chico, banda que mistura a essência da música brasileira com o rock clássico. “A ideia era tocar nossas referências, fazer um som do que a gente gostava de ouvir, a composição autoral vem a galope”.
Na opinião do músico, o cenário musical da cidade é muito efervescente e diversificado, apesar de ser conhecido nacionalmente como celeiro da música sertaneja. “Existe um lado B alternativo sendo construído ano a ano com música de qualidade e eu me sinto orgulhoso por fazer parte disso. Essa galera vem com muita propriedade e personalidade nesse novo cenário”.
Quem ouve a música?
O público é indispensável na carreira de um músico pois é a ele que toda a produção é destinada. Um dos principais desafios é exatamente conquistar esse público. Na opinião de Guga Borba, cabe ao artista levar o novo para o público conhecer e fazer as pessoas se apaixonarem por uma musicalidade nova.
O condicionamento do público à cultura de massa é um dos maiores problemas encontrados pelos músicos regionais. O reconhecimento regional encontra dificuldades de aparecer sem o reconhecimento nacional. Para o músico Bèget de Lucena, o público dá mais importância para o que é popular e o que é mais visualizado no cenário nacional. “Essa é a maior dificuldade, mas a gente ainda consegue existir. O público é complicado, a gente sempre encontra quem acompanha nosso trabalho, mas a grande massa a gente sabe que vai para o cenário da música sertaneja”. Borba também afirma que o público geralmente não é tão receptivo. “As pessoas são muito acostumadas a achar que o que é bom vem da televisão e nem sempre isso é verdade. Existe artista muito talentoso, com uma super musicalidade que nem sempre está na televisão”.
Apesar desse problema em comum, as exceções ainda aparecem. Os pubs, por exemplo, oferecem um local mais intimista e maior proximidade com as pessoas que ali estão. De acordo com Borba, esse é um diferencial que possibilita mais interação entre o músico e o público e, consequentemente, maior atenção para a música. Para ele, a divulgação por meio das mídias digitais contribui muito para levar pessoas aos shows. “Tem que se preocupar sempre com isso porque as pessoas não têm como adivinhar onde você vai tocar. Também cabe às casas noturnas e aos pubs fazerem essa divulgação, de que você está ali”.
Mesmo com as dificuldades do público em geral, há uma parcela que mantém fidelidade aos músicos do cenário alternativo. O músico Fillipe Saldanha afirma que não houve dificuldade para a Codinome Winchester começar a se apresentar nos bares de Campo Grande e que há, sim, bastante público para o rock. “Tem bastante público do rock aqui, não tanto do rock que eu escuto, mais do metal. O rap é bastante forte aqui, essa cultura de rua e mais alternativa, eu vejo que esses são os movimentos mais unidos”.
Jerry Espíndola afirma que é “um pouco de azar a população não ter esse amor pelos artistas daqui”. Para ele, os músicos ainda estão em um período de transição e na busca por espaço. Há pouco investimento na música como cultura para a população e faltam projetos, tanto dos governos Estadual e Municipal, como das próprias universidades.
Quem apoia a música?
[Citação em destaque] “A gente não vê movimento. Não vê espaço para que a galera possa descobrir. Perto do que temos de proposta, é muito pouco espaço. Os músicos estão presentes, talvez o que falta é esse incentivo mesmo, para que os artistas possam mostrar seu trabalho para o público e aumentar a proximidade.”
Jerry Espíndola, 51 anos
A reclamação por investimento em eventos e espaços para a música regional é unânime. Jerry Espíndola acredita que viver de música está complicado, devido à falta de valorização do profissional. “É impressionante, o cachê que eu ganhava em 99 é o mesmo que se paga hoje nos bares de Campo Grande. São quantos anos? É um desrespeito muito grande”.
O músico aponta que muito dos lugares em que costumava tocar com as antigas bandas hoje não existem mais. “Metade desses lugares fecharam por algum motivo, falta de grana, de incentivo, burocracia ou problema de acústica”. Para ele, o que mais falta são espaços alternativos que fujam do contexto comercial e que aproximem a música e o público. “A juventude é o público-alvo da nossa música e a gente tinha que conseguir chegar mais fácil nesse público”.
O comerciante Pietro Luigi, 31 anos, transformou sua loja de CDs, DVDs e quadrinhos em um desses espaços. “Nós abrimos um espaço para que as bandas possam mostrar seus trabalhos de alguma maneira”. Seja por venda de CDs ou pequenos shows, Luigi tenta se inserir no mercado e, principalmente, ajudar as bandas. Ele acredita que o cenário está crescendo e a música autoral começou a ganhar mais espaço O problema que ele aponta é o mesmo dos músicos: faltam eventos. “Alguns bares começaram a fechar. Alguns eventos que aconteciam pela Fundação de Cultura foram deixados de lado e até as bandas começaram a desanimar por conta disso”.
Luigi vê nos festivais e editais uma esperança para o cenário e o incentivo para novos nomes da música “De três anos pra cá começaram a surgir bandas a ponto de começar a ter festivais, e agora com os editais de cultura abrindo novamente, eles podem mostrar a cara além de campo grande.”
[Citação em destaque] “Campo Grande está caminhando para o potencial de ser uma cidade que tem uma indústria de música forte. Estão acontecendo vários movimentos. A criação dos Sindicatos dos Músicos vai começar a fiscalizar os bares que cobram couvert, fiscalizar espaços, condições. As perspectivas são boas. Acho que a gente tem o principal, que é qualidade, resta a gente se organizar melhor para conquistar os espaços que nos cabem.”
Jerry Espíndola, 51 anos