OPINIÃO

Adia ENEM e adianta bom senso, empatia e igualdade

Lara Bellini e Marina Gabriely 8/06/2020 - 15h02
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“E se uma geração de novos profissionais fosse perdida? Seria o melhor para o nosso país?”. Um tripé, dois celulares, um jovem classe média alta e um discurso grosseiro. Foi assim que o Ministério da Educação (MEC) introduziu a campanha do Enem 2020 e, de quebra, externou seu tamanho descaso com estudantes, principalmente com aqueles que possuem mais dificuldades sociais e recursos nulos.

A peça publicitária corrobora com o posicionamento irresponsável do presidente da república Jair Bolsonaro (sem partido) de que o país não pode parar e promete que dias melhores virão. Mas será que virão mesmo? Será que os governadores são mesmo ditadores por “impor” a quarentena nas cidades brasileiras? Como sugeriu Abraham Weintraub, Ministro da Educação, que pelos rumos do seu discurso não se importa em perder mais de mil brasileiros por dia se os médicos, enfermeiros, engenheiros e professores do futuro estiverem garantidos, mas que futuro desigual e seletivo será esse?

O Brasil ranqueia o 7º lugar na lista de países mais desiguais do mundo, a frente apenas de países africanos, conforme o relatório de desenvolvimento humano feito pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), e esse dado recai de forma agressiva sobre a classe estudantil. Em meio à pandemia do novo coronavírus, escolas de todo o país se viram obrigadas a fechar suas portas e migrar para um ensino a distância, condição que instituições particulares conseguiram aplicar, mas a rede pública encontra diversos obstáculos e, em sua maioria, suspende as atividades por tempo indeterminado. Segundo um levantamento exclusivo para o contexto de pandemia, publicado pelo jornal O Globo, no mês de abril, 6,6 milhões de estudantes brasileiros não têm acesso à internet, sendo a maioria de escolas públicas e dependentes das instalações da mesma.

Devido a pressão popular para o adiamento da prova e a aprovação do texto-base do projeto pelo Senado, o Inep cedeu. Mas o atual calendário é imoral e revela o total desinteresse com as condições estudantis e as intenções segregacionistas do ministro da educação, que já tinha pincelado o seu ponto de vista durante uma entrevista à rádio Jovem Pan de São Paulo, em 14 de abril, ao afirmar que o objetivo do Enem é selecionar as pessoas mais qualificadas e inteligentes e que a prova ficou mais difícil para todo mundo. O MEC promove essa competição mas não dá recursos nas partes atuantes, pede para fazer o bolo mas não fornece os ingredientes. Já viemos de um país historicamente desigual, a pandemia só trouxe à tona a conta de anos acumulados, no qual uma parcela da população é injustiçada até mesmo na hora de buscar novas oportunidades de crescimento, em uma sociedade majoritariamente conhecida pelo mito da meritocracia.

Se o Enem não fosse pra fazer justiça social, para que haveria de ter cotas para ingresso nas universidades públicas? Dados sustentam que ele tem contribuído, ainda que não igualmente, com maior esplendor para a democratização do acesso ao ensino superior. Ainda assim as diferenças de desempenho existentes entre alunos das escolas privadas e os alunos das escolas públicas é gritante, e é complementado pelo comentário do atual Ministro da Educação, “Enem não foi feito para corrigir injustiças", porém qual a dificuldade em deixar a competição mais justa?

O cenário atual nos remete a ideia de uma seleção natural. Não temos só o vírus para reforçar essa ideia, mas o adiamento do Enem para 30 a 60 dias depois da data prevista nos editais, traz um mar de incertezas aos estudantes e certifica que a seleção está no acesso às universidades também. A continuação dos estudos remotamente só funciona para o estudante que não trabalha, que tem acesso à internet, que pode pagar um cursinho online, que estuda em escolas particulares e está tendo aula a distância, e para quem não está doente. O estudante que não tem voz, não possui internet para reivindicar seus direitos. Funciona como um combate, só que a maioria está com facas de refeição e a minoria com armas refinadas, o combate é rápido e certeiro, e as vítimas fatais. Será suficiente o adiamento do combate se as armas continuam as mesmas?

A sobrevivência, a saúde, o acesso aos direitos à educação devem estar acima de qualquer calendário. O que frustra milhares de alunos, caro ministro, não é o adiamento de uma prova mas sim a falta de ajuda, envolvimento e empatia que o MEC têm destinado a quem mais precisa do apoio de políticas públicas de educação. Não se pode responsabilizar milhões de jovens e prejudicar o seu futuro por conta de uma situação que ninguém estava preparado para lidar. Os estudantes brasileiros continuam esbravejando por um adiamento mais justo, em dois meses não se recupera um semestre perdido. As ondas de gritaria vão continuar. #AdiaENEM e adianta o fim da desigualdade e do preconceito. Essas vozes não serão abafadas.

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