O jornalismo brasileiro, mais do que nunca, enfrenta um grande desafio. A discordância entre autoridades sanitárias, governamentais e federais dentro do país durante a pandemia, gera polêmicas e acontecimentos que desviam a atenção da real urgência do momento: a união, de todos os setores, no combate à covid-19. Além disso, há um impacto social quando, em meio à pandemia, a imprensa tem que lidar também com uma sociedade infectada com o vírus da pós-verdade.
Inegavelmente, há uma crise de saúde, econômica e de sanidade. O negacionismo e as teorias são tantas que as discussões e pautas jornalísticas precisam ser muito bem articuladas para não beirarem o surrealismo. A defesa de tantos integrantes do governo, principalmente do presidente, de que a doença não era tão grave quanto era anunciada e que não passava de uma “fantasia da mídia”, se anulou completamente quando comprovadas as faltas de testes suficientes, subnotificações de óbitos e infectados altíssimas, hospitais à beira do colapso e mais de 600 mortes registradas por dia. Ao comentar a escalada de mortes causadas pelo vírus, o presidente foi capaz de ironizar "e daí?" e insistiu que cabe aos governos locais tomarem medidas, o que evidencia sua pequenez diante do cargo que ocupa.
De acordo com um estudo do Imperial College de Londres, ao final de abril, entre 48 países analisados, o Brasil tinha a maior taxa de contágio do mundo: 2,81. Isso significa que, hoje, cada infectado no Brasil transmite a doença para uma média de quase três pessoas. Na Alemanha, referência hoje, a taxa é de 0,8. A pesquisa é assinada por 47 pesquisadores do centro de doenças infecciosas da universidade (MRC), um dos mais respeitados do mundo na análise de epidemias. Além disso, o país apresenta uma taxa de 12% de desemprego e mais de 96 milhões aguardando o auxílio emergencial anunciado pelo governo, que depende do acesso à internet e um celular para ser solicitado. Entretanto, conforme uma pesquisa divulgada recentemente pelo IBGE, outros 46 milhões de brasileiros não acessam a rede. Os trabalhadores aprovados para receberem o auxílio, têm enfrentado dificuldades para movimentar e sacar o benefício, o que contribui para as longas filas observadas nas portas das agências.
Não só a pandemia se agrava, como também a crise política no país se evidencia. Bolsonaro conseguiu ganhar a péssima fama de único chefe do executivo do mundo a demitir seu próprio ministro da Saúde no decorrer da crise. O ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, também pulou fora do Titanic após acusar o presidente de tentar interferir politicamente na Polícia Federal, numa tentativa de blindar seus dois filhos de uma investigação, o vereador Carlos e o senador Flávio, com o intuito manter o controle sobre inquéritos. Carlos é apontado como um dos líderes de um grupo que espalha massivamente notícias falsas e boatos pela internet, pelos aplicativos WhatsApp e Twitter, contra opositores do presidente e instituições, como o STF e o Congresso Nacional. Trata-se do "gabinete do ódio", formado por profissionais responsáveis por defender Bolsonaro nas redes e atacar opositores. Um estudo da UFRJ e FespSP feito no início de abril, analisou mais de um milhão de postagens e revelou que até 55% das publicações favoráveis ao presidente, no dia 15 de março, foram feitas por robôs.
Além do inquérito sobre as fake news, há um segundo que pode envolver novamente o vereador, que trata sobre os protestos pró-golpe militar dos quais deputados bolsonaristas e o próprio presidente participaram no dia 19 de abril, causaram aglomerações e foram, mais uma vez, totalmente contra às recomendações mundiais no combate ao vírus. Há suspeita de que exista uma ligação entre os empresários que financiaram esses atos com a rede da fake news.
Desde os primeiros casos na China, a imprensa tem informado sobre os riscos, formas de transmissão e avanços da covid-19. A cobertura midiática é importante para que as pessoas compreendam a seriedade por trás do momento atual. Imaginem o mundo com um jornalismo preguiçoso, que falasse pouco sobre o assunto e de forma rasa. Quando a pandemia se torna pauta diária, a população passa a progressivamente entender mais sobre a necessidade de prevenção da doença. Casos políticos durante a crise não podem se tornar tema central. A criminosa desigualdade social brasileira, por exemplo, está se encarregando de decidir quem fica mais exposto à contaminação e anuncia tragédias.
Nas periferias e nas favelas, falta desde o básico, como água e sabão, até espaço para cumprir o isolamento. Não podemos deixar a ideologia negacionista presente no governo Bolsonaro, que rejeita qualquer tipo de especialista, de estudo e de racionalidade, atingir quem tanto faz, e neste momento, se arrisca, por uma sociedade bem informada. Os debates jornalísticos com especialistas, as reportagens que mostram a verdadeira realidade do país e a cobertura de informações servem para conscientizar e salvar vidas – este é o foco. E não podemos desviar dessa missão. Se o governo decidir por continuar a emanar ignorância, que se erga o bom jornalismo e emane conhecimento à população. Somos acostumados na história a resistir. Não será diferente desta vez.