CRÔNICA

Faça o favor, pare esse carro

Lidiane Antunes 1/07/2019 - 21h08
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Pedido sutil da ordem de paz. “Ei, companheiro, faça o favor, pare esse carro”. Deus acima de todos, e o Brasil em cima de nós. “Ei, companheiro, faça o favor, pare esse carro”. Força Armada, idolatrada, salve quem? A nossa pátria que todo dia mata alguém? Ressoa o peito a dor da canção; 81 tiros e um corpo no chão. O grito desesperado de quem nem se despediu, parecia piada de primeiro de abril. “Vá dizer ao charuteiro que me empreste umas revistas”, pra ver se cobre a justificativa que vão tentar arrumar. Ele cruzava a Zona Oeste do Rio, mas o Comando do Oeste disse que foi resposta a uma “injusta agressão”. Qual? Da roda gigante que não parou no domingo? Ou da família que perdeu seu ente querido? A porta se abriu sem nenhum cuidado, porque o cara morreu sem deixar seu legado. Bandido, né? 

O cara era negro! Não cumpriu uma ordem e criou desrespeito. Vacilo perfeito! Morreu o sujeito que não quis parar no bloqueio militar. “Ei, companheiro, faça o favor, pare esse carro. Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol”. Mas seu corpo pode ser jogado ao chão, você não era bandido, irmão?! Homem fardado é mocinho, e o negro do morro que é o vilão. Morreu soterrado pela ignorância dos homens fardados de intolerância. Foi por engano, segundo relatos. Mas a família das vítimas disse que não viu nenhuma sinalização. “A gente só pensou que ele tinha desmaiado”. Um vídeo mostra o desespero da esposa e do filho que perderem um espelho. Reflexo de homem trabalhador, que naquele domingo foi criminalizado. Sepultaram seu corpo todo fuzilado. A manchete não erra, é igual uma mira: “militares do Exército disparam vários tiros”. Fake News? É onde fica o pedido de paz. “Ei, companheiro, faça o favor, pare esse carro”. Naquele 07 de abril, o pão esfriou. E a manteiga à beça foi parar no caixão – que se molhou de lágrimas escorridas da alma, sem qualquer palavra, só indignação. 

Chorou uma família, chorou uma nação. Nenhum tiro falhou. E o país humilhado. A Força se voltou contra o próprio cidadão. Não há nada que pague essa perda inesperada, do músico que ainda cantava para o seu filho dormir. Uns foram presos, e o restante, o que faz? Tem muito homem armado se dizendo “de paz”. “Faça o favor, me traga um guardanapo e um copo de água bem gelada”, que é pra ver se eu resfrio essa história mal contada. Não é assim que se burla uma lei. Nesse país que tanto se fala em justiça, “faça o favor de me trazer depressa uma boa média que não seja requentada”, porque é só em festa de gente boa que acaba em pizza qualquer confusão. E não se esqueça de parar quando ouvir qualquer pedido da ordem de paz. Faça o favor, pare esse carro.

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