OPINIÃO

O que a Covid-19 revela sobre os presídios brasileiros

Carlos Eduardo Ribeiro Fernandes 5/06/2020 - 21h59
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Em um cenário de precarização deliberada em um sistema falido, a Covid-19 vem como expoente da situação de invisibilidade da terceira maior população carcerária do mundo. Se por um lado são recomendadas medidas de distanciamento social, lavagem constante das mãos, isolamento, uso de máscaras, por outro, vemos tais medidas incabíveis no contexto desumano em que se apresenta o sistema carcerário brasileiro. O Código Penal traz no artigo 38: “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”, então como efetivar tal código dada a situação que nos encontramos?

A política governamental mais amplamente praticável por todos os governantes que já lideraram esse país foi o encarceramento maciço. Sustentada por uma escalada punitivista, sem qualquer solidariedade social, a sociedade, a partir desses sentimentos, fez criar relações materiais com o sistema jurídico. Assim, perpetuando uma dinâmica desigual e excludente, validada pela suposta segurança e ordem. Com o novo coronavírus, vemos tais práticas refletidas nas propostas de segurança a fim de deter a disseminação da doença nos presídios.

No dia 17 de abril, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) propôs ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária que detentos contaminados ou em grupo de risco passem a ficar isolados em contêineres fechados com pequenas passagens de ar, teoricamente com o número máximo de 10 detentos por contêiner, porém sabemos da ineficácia diante a execução da legislação penal em confronto com a realidade prisional. Uma medida essencialmente desumana ganharia novas camadas de opressão dada as circunstâncias do sistema.

Em 17 de março, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou e divulgou a Resolução nº 62 com recomendações para a redução da população carcerária a fim de conter a disseminação do novo coronavírus no sistema prisional. Seguindo essa linha, o ministro Marco Aurélio Mello, ainda no dia 17, também sugeriu uma política de desencarceramento emergencial, com liberdade condicional para presos acima dos 60 anos e regime domiciliar para aqueles do grupo de risco. No dia 18 do mesmo mês, o Supremo Tribunal Federal recusou a proposta, achando necessário apenas as recomendações acerca da higiene dentro dos presídios.

O cenário pandêmico avançou e hoje novas medidas foram adotadas, seguindo as recomendações do CNJ, como o fechamento para visitas, uso obrigatório de máscaras por parte dos funcionários e o pedido mais que necessário do Ministério Publico de cada estado para a prisão domiciliar daqueles que já trabalhavam fora das unidades. A covid-19 é um desafio para o sistema prisional do mundo inteiro, mas no Brasil, onde um mal banalizado sustenta situações absurdas enraizadas no sistema carcerário, a situação se torna uma tragédia anunciada. Medidas realmente razoáveis, eficientes, que ofereçam uma solução rápida, se esbarram em uma pretensão punitiva que parte de nossas relações interpessoais e extrapola para o campo político, sintetizadas na eleição de discursos de ódios que negam uma urgência nas discussões públicas sobre a vida na prisão ou alternativas radicais aos presídios.

O sistema prisional brasileiro já vem sofrendo muito com doenças infecciosas, que são aquelas transmissíveis por agentes patogênicos como vírus, bactérias e parasitas, e se dissipam rapidamente em ambientes fechados, são os casos da escabiose (sarna) da hanseníase e das hepatites A e B, além da principal doença, a tuberculose. Nos últimos 30 anos, segundo informações do portal Drauzio Varella, encarceramos quase nove vezes mais sob a prerrogativa de uma cidade mais segura, mas o número de profissionais ligados a saúde nos presídios diminuiu. Um estudo do Grupo de Pesquisa Saúde nas Prisões, da Fiocruz, revela que a taxa de mortalidade entre presos no Rio de Janeiro é cinco vezes maior que a média nacional. Dessa taxa, 83% ocorrem devido a fatores não ligados à violência, ou seja, decorrem de doenças que poderiam ser revertidas diante um diagnóstico rápido e um atendimento clínico íntegro. A tuberculose, por exemplo, responsável por uma epidemia dentro dos presídios, é uma doença absolutamente reversível.

Portanto, a Covid-19 é uma lupa para todos os problemas sociais, ela expõe o debate emergencial acerca de reformas e abolições do sistema carcerário que ativistas têm defendido há anos. Em contrapartida, há um crescente movimento de respostas repressivas e punitivas, não só atreladas ao setor criminal, mas também em conflitos sociais gerais. Muito se debate sobre o mundo pós pandemia, no que tange às esferas judiciais, existe a discussão se essas medidas emergenciais de liberação e prisão domiciliar poderão oferecer um material de reflexão para a sociedade. O certo é que o governo vem exacerbando sua agenda criminal e penal, disseminando uma visão vingativa e dicotômica da existência de “bandidos” e “cidadãos de bem” com políticas públicas aderentes a esses princípios.

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