CRÔNICA

O que sobra quando não se tem mais nada

Ana Laura Menegat de Azevedo27/06/2020 - 16h12
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José ‘sai antes do sol’ e só volta depois que o grande astro se foi. Todos os dia sobe a ladeira sob a lua das 23 horas. A rua nem sempre faz silêncio, mas nesse dia está muito quieta perto do barulho que vem de longe. Conforme ele anda, percebe que o som é a voz de sua mãe. Corre até a frente de casa. Porta escancarada, vidros quebrados. Sua mãe chora e berra ao chão.

José, eles roubaram tudo, José. Roubaram a bandeira. Lembra, aquela que você tanto gostava? Ah, as cores, eles roubaram as cores. Nossa casa, antes tão colorida. Eles roubaram nosso verde e amarelo. As cores que ficam não parecem as mesmas. O vermelho, mais vermelho. O preto, mais preto. Todo o resto se apagou. Filho, eles levaram tanta coisa. Que dor! Você me escuta? Como me escuta? Eles roubaram tudo. Roubaram minha voz, meu corpo. Roubaram tudo, tá vendo? A casa tá vazia.

Pera, mãe, não estou acompanhando. Roubaram a carne que alimenta e a carne que compõe. Meu corpo não é mais meu. Será que um dia ele foi? Essa pele, essa pele eles não roubaram. Essa pele ficou. Essa pele ficou com 80 tiros, mais um nas costas, outro na barriga. Tá vendo, José? Você enxerga o alvo em minha testa? Isso eles não roubaram, eles que colocaram. É, a gente ‘quase foi feliz’.

E João, mãe, cadê meu irmão? Ah, meu filho, roubaram João também. Entraram e roubaram ele. Roubaram tudo que cabia onde não cabia quase nada. E roubaram tudo que cabia no peito. Roubaram João Pedro. Roubaram Miguel. Roubaram Ágatha, lembra dela? Ela tava aqui na hora que eles chegaram. Sabe o que eu acho, José, que quem mandou roubar Mari, veio roubar a gente também. E a gente que é ladrão, eles dizem.

Mãe, e agora? José pergunta enquanto senta ao lado da mãe, no chão frio e vazio. Lá fora, a noite cai. Roubaram tudo e o sol nem está presente. E agora, José? E agora, ‘tudo que nois tem é nois’.

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