Os desfiles das escolas de samba de 2022, que aconteceram extraordinariamente no último mês de abril, foram marcados não apenas pela data “fora de época”, mas também pelo resgate do protagonismo da mulher negra nos enredos. Apesar de estarem em posições de destaque como velha-guarda, porta-bandeiras, rainhas de bateria e passistas, são poucas escolas que dedicam um desfile para contar as histórias delas.
Este ano, a Acadêmicos do Grande Rio consagrou-se campeã pela primeira vez no carnaval do Rio de Janeiro ao trazer como fio condutor de seu enredo sobre Exu a catadora de lixo Estamira, conhecida pelo documentário homônimo, marcando a segunda vez consecutiva que uma escola de samba carioca conquistou o título ao retratar mulheres negras. Em 2020, a Unidos do Viradouro venceu seu segundo campeonato no grupo especial com o enredo ‘Viradouro de alma lavada’, sobre as Ganhadeiras de Itapuã, grupo de mulheres negras que lavavam roupa na Lagoa do Abaeté para comprar suas alforrias. Antes disso, a última vez que uma escola ganhou o carnaval do Rio com um enredo centrado em uma mulher negra foi apenas em 1963, quando o Acadêmicos do Salgueiro levou à avenida a história de Chica da Silva.
Apesar das mulheres negras terem contribuído para o crescimento do carnaval no Brasil e estarem inseridas nos postos principais do samba, ainda falta representatividade nos enredos dos desfiles. Em abril deste ano, mês em que ocorreram as apresentações, a prefeitura de São Paulo inaugurou uma estátua de Deolinda Madre, conhecida como Madrinha Eunice, sambista negra que fundou uma das primeiras escolas de samba brasileiras, a Lavapés. A escola foi fundada em 1937, após a ida de Madre ao Rio de Janeiro, onde se apaixonou pela São Carlos, escola que hoje é a tradicional Estácio de Sá. Deolinda foi apenas uma das mulheres pretas a agregar na história do carnaval.
Quem enxerga isso de perto é Vallesa Rocha (22), porta-bandeira da escola de samba Mocidade Independente de Nova Corumbá e técnica de enfermagem fora do seu posto no carnaval. A sambista argumenta que a mulher negra ainda é resumida apenas a um estereótipo de beleza nas apresentações e assegura que muitos acabam se chocando quando elas ganham uma representatividade fora das posições que exigem apenas o samba no pé. “Infelizmente, a mulher preta é vista somente como peito e bunda.”, desabafa. Apesar de Vallesa ser só uma das várias mulheres pretas no samba corumbaense, lamentavelmente nenhuma das agremiações da região tiveram um enredo referente a mulher negra em todos seus anos de existência no carnaval pantaneiro.
Como Vallesa, Deolinda e outras protagonistas negras do carnaval, a contribuição das mulheres pretas ao mundo do samba é incontestável, porém suas agremiações falham em contar suas histórias e as histórias de suas semelhantes, como Estamira e as Ganhadeiras de Itapuã, destaques nos enredos campeões do Rio nos últimos anos. O samba, sendo um espaço democrático e de grande representatividade, ainda reflete as deficiências da sociedade, como a marginalização da mulher preta. Falta não olhar apenas para trás e resgatar histórias perdidas, mas também para dentro: há milhares delas nas comunidades.