CRÔNICA

Quando saio de casa

Alicce Rodrigues20/06/2020 - 17h48
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Hoje é um daqueles dias de sair para pagar as contas. Todas as saídas essenciais têm resultado em surtos de consciência do momento e da minha incapacidade diante de tudo. As agências bancárias da cidade cospem filas semelhantes àquelas que a burguesia estava acostumada a fazer em São Paulo ou no Rio de Janeiro sempre que algum cantor internacional famoso passava por aqui. No centro, os moradores de rua que procuram ajuda não são invisíveis. O relógio do celular marca 12 horas quando ando até a lotérica e observo três crianças diferentes procurarem comida em duas lixeiras próximas aos restaurantes. O único dinheiro que tenho no bolso é para as contas, não sobrará quase nada.

Na fila da lotérica, enxergo e escuto alguns jornalistas da GloboNews na televisão do bar ao lado discutirem sobre o racismo no Brasil. É necessário. Exceto quando todos os jornalistas da transmissão são brancos e sem lugar de fala. Do outro lado da rua, a Fundação do Trabalho também contempla a cidade com uma fila de quase duas quadras com pessoas procurando algum emprego. Lembro-me que o desemprego já atinge mais de 12 milhões de brasileiros e só tende a aumentar. O troco que sobra das contas, entrego nas mãos de outra criança, mais uma entre tantas que se humilham no semáforo. Como de costume, há o padrão Brasil: todas as quatro eram pretas. Já em casa, reflito sobre meu isolamento. Tenho dinheiro, comida, acesso à informação e, consequentemente, pertenço à uma das poucas bolhas de proteção e privilégios.

A noite cai, mais um noticiário para assistir. Vejo coletivos de periferias sendo entrevistados. Estão há meses distribuindo comida, água, sabão, álcool gel e outros mantimentos necessários para milhares de pessoas que não tiveram auxílio emergencial ou estão simplesmente abandonadas no mundo. Esses coletivos veem a dor na rua. Diária. Sentem o cheiro. O cheiro dos corpos, sentem o calor abafado, em cada beco. Carregam bolsas pesadas, não tem apoio de governo nenhum. E precisam se esquivar de balas. A polícia mata, sem pensar duas vezes. Quando penso em polícia, impossível não lembrar da estrutura escravocrata que possui a militar. Esqueceram de servir à comunidade e se vendem à elite. Escolheram uma pele alvo. A bala perdida tem endereço. Alguém me responda, por favor, se esperar justiça por aqui é uma utopia?

A pandemia parece servir como uma lupa. Vivemos uma bagunça, dentro de outra bagunça. Na terra onde nada muda, o sistema continua falho, corrupto, escravista, violento, sujo ao ponto de assumir que “odeia o termo povos indígenas”.

Quantos mais precisarão ser João Pedro, Jenifer Gomes, Kauan Peixoto, Kauá Rozário, Pedro Gonzaga, Kauê Ribeiro, Ághata Félix, Ketheleen de Oliveira? Quem disparou usava farda, o crime foi a cor. Um corpo preto morto é tipo os hits das paradas, todo mundo vê, mas essa porra não diz nada. Os últimos dias se resumem em angústias e incapacidades. Nas redes antissociais, nós, brasileiros, compartilhamos a dor das imagens do brutal assassinato de George Floyd. Pergunto-me, e se existisse um vídeo da Ághata no Complexo do Alemão, dentro de uma kombi, ao lado da mãe, morrendo com um tiro de fuzil nas costas?

Os últimos 500 anos do Brasil nos fazem caminhar sobre gigantescos cemitérios que enterram genocídios. Quem ainda não foi enterrado, eu vejo quando saio de casa.

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