OPINIÃO

Quem fica em casa

Larissa Adami e Victória de Oliveira 3/06/2020 - 16h56
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“A população de rua, com a cidade mais vazia, ficou mais visível, e a intolerância aumenta também porque as pessoas que estão em casa veem os moradores de rua. Se fala muito: fique em casa! Qual é a casa deles?” profere, para uma reportagem da Ponte Jornalismo em 19 de março, o padre Júlio Lancelotti, coordenador da Pastoral Povo da Rua em São Paulo há mais de 34 anos, enquanto distribuía sabonetes a mais de 100 pessoas desabrigadas. Esse questionamento representa um resumo de como essa minoria está encarando o inimigo invisível que aflige o mundo todo na atualidade, o novo coronavírus.

Medidas de prevenção são constantemente assuntos em diversos debates e conversas do dia a dia do povo brasileiro, que enfrenta o aumento insistente do número de infectados com a covid-19. Contudo, para a população em situação de rua, ações profiláticas, que parecem tão simples, são acompanhadas de diversos impedimentos, uma vez que se o acesso à água potável, adstringentes, e até mesmo a um local decente para a realização do isolamento já é difícil, quem dirá a obtenção de máscaras e do álcool em gel tão protagonistas dessa situação.

Para amenizar esse panorama e abrigar moradores das ruas, prefeituras tomaram a frente e montaram lugares improvisados com espaços abertos que permitem certo isolamento, como são os caso de escolas vazias que estão sendo utilizadas em Campo Grande a mando do prefeito da cidade, Marquinhos Trad (PSD). Porém, ao passo em que esse recolhimento auxilia em prevenções futuras, é deficiente a medida em que continua expondo-os à aglomerações pela falta de estruturas específicas para dar conta do grande contingente, sem falar na escassez de produtos higiênicos e alimentares. Além disso, essas providências não os protegem durante o dia quando muitos escolhem, ou até mesmo precisam, deixar esses lugares para voltarem à suas rotinas nas ruas.

A ação de invisibilizar cidadãos que na rua encontram a única saída para suas vidas tornou-se um hobby tóxico para um país que ainda não consegue estipular com clareza a quantidade de pessoas que vivem sem endereço fixo. Como publicado pelo Correio do Estado em maio do ano passado, a população de rua cresceu 20% entre agosto de 2017 e fevereiro de 2019, de acordo com dados mais recentes do Consultório na Rua - programa da Secretaria Municipal de Saúde (Sesau) de Campo Grande/MS e contabilizava no último ano mais de 1.800 pessoas. Dificilmente se tem um censo nacional num país que não conta com bases oficiais sobre esse público, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Assim, sem rostos perante o Estado, até um simples auxílio emergencial liberado pelo governo federal com intuito de assistir, dentre outros, desempregados torna-se inviável a grande parte desse grupo, pois o cadastro por meio de celulares e endereços residenciais não cabem em suas realidades.

A questão da população em situação de rua pouco fora solucionada ou atenuada numa sociedade pré-pandêmica. Não que não houvesse assistência social, muitas são as organizações não governamentais que buscam amenizar os efeitos da pobreza extrema a quem se encontra nas ruas do país, como a ação de instituições semelhantes a de Padre Júlio, mas escassas foram as decisões vindas do governo que buscassem de forma humana solucionar tal descaso. A pandemia provocada pelo novo coronavírus afeta todos de um modo geral, não havendo espaço para a contínua invisibilidade que junto caminha com vida dos que na rua encontram uma única solução de sobrevivência. Aparentemente, foi necessária uma pandemia para enxergar uma desigualdade que já estava escancarada.

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