CRÔNICA

Sangue e cova – Um relato de 2020 para 2020

Rafaella Moura20/06/2020 - 17h54
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Querido 2020,

Aqui quem fala é alguém que tem tido o desprazer de te vivenciar. Me desculpe começar dessa forma tão grosseira, não quero de maneira alguma te desmotivar a saber sobre você. Acredito que mais da metade da culpa de estarmos vivendo tudo isso é nossa, e não sua. Afinal, você é só o reflexo do que os outros anos construíram. Poderia ter sido em 2021, 2035, até quem sabe 2050. Mas de toda forma, é bom que não tenhamos adiado o sofrimento e ruim por ter sido logo com você. Passamos por 2019 sonhando em dias melhores, mas infelizmente sonhar e não agir nunca tirou a gente de crise. Por isso, esperávamos muito de você, acreditamos que a passagem de 23:59h para 00:00h mudaria o mundo completamente e viveríamos como se estivéssemos em algum conto da Disney. Mas desse ano, nem Tim Burton seria capaz de mascarar o sofrimento de forma lúdica.

Na madrugada, contemplamos os fogos e, em poucos dias, os clarões no céu iluminaram o chão com mísseis. O Oriente Médio perdeu um de seus nomes mais importantes, enquanto nós, perdemos as esperanças. A ameaça de uma 3º Guerra Mundial nos fez crer que o impossível estava próximo. Vinte-Vinte, eu fico me perguntando se o Trump teve paz depois disso, porque a gente não teve. A gente só teve a certeza de que o ósseo presidencial é ligado a sangue e cova, e o aluno nota dez dessa matéria é o nosso representante de verde e amarelo.

Não somos só nós que nos cansamos dos erros incorrigíveis dos nossos “seres humanos de estimação”, a natureza também não tem estado muito satisfeita com a falta de progresso e causou tal desordem na Austrália que nem o homem foi capaz de conter. O Brasil, infelizmente, não ficou muito atrás disso e a Amazônia mostrou que com um patrimônio de preservação mundial não se brinca. Fogo e morte. Por falar em morte, isso é o que não falta em você. Eu sei que é dolorido e delicado tratar de assuntos mórbidos e fúnebres em uma epístola como essa, mas a gente não pode fugir da realidade. E olha que a gente tem tentado, e a coisa tem sido tão séria que não mediram esforços e até encontraram um suposto universo paralelo. Vinte-Vinte, eu não sei o que pensa sobre isso, mas eu encararia até dormir com o Demogorgon no mundo invertido de Stranger Things a ter que lidar com você.

E claro, eu não poderia deixar de te contar que estamos todos em quarentena. Na verdade, nem todos. Uns estão levantando pneu no crossfit. Outros estão na porta da universidade prostrados aos pés do reitor clamando pela volta as aulas presenciais. Tem até gente indo no sushi com os amigos mesmo morando com pessoas do grupo de risco e, ainda sim, tem quem esteja em casa tentando proteger essas pessoas. A pandemia da Covid-19 tem feito muito estrago, Vinte-Vinte, mas enquanto não morre alguém do nosso lado a gente não se cuida. Infelizmente, juízo e empatia não se compram na farmácia mais próxima. O verde e amarelo também não ajuda. Claro que não ajuda, ele não é coveiro, como ele poderia auxiliar com as mortes se nem para as vidas ele presta suporte?

Imagino que você já esteja um tanto quanto abatido depois de tanta tragédia, porque eu também estou. Mas, Vinte-Vinte, se pensa que o mundo já está em colapso, espera até eu te contar sobre a promoção da carne negra no mercado mundial. Não subestimo seu conhecimento histórico, então deduzo que essa não seja nenhuma novidade pra você. Mas depois de George Floyd, João Pedro Mattos Pinto e Miguel Otávio Santana da Silva, as coisas têm tido um impacto midiático maior. Agora pode estar se perguntando de quem são esses nomes e quem são essas pessoas. As manchetes não estampam nomes, estampam crimes e mortes. Sangue e Cova. “Homem negro morre após ser sufocado por policial nos EUA”. “Menino de 14 anos é morto em casa durante ação da PF no Rio”. “Criança de 5 anos morre após cair do 9º andar de prédio no Centro de Recife”. Depois de séculos vivendo a opressão do branco sem direito de retórica, o preto assumiu a voz e hoje dá aula pra que seu protagonismo não seja apagado nem em meio a sua luta. O verde e amarelo piscou. O preto e vermelho hasteou. A união legitima contra o racismo e o fascismo foi estabelecida e até quem escolhia ser cego diante da necropolítica escolheu ver seus últimos dias. Em mais um ano, Vinte-Vinte, lutar e resistir tem sido nosso resquício de esperança por dias melhores.

Aos poucos e a passos curtos, vamos nos redimindo com a história em uma oportunidade de reverter nossos erros e até criando esperança de construir uma visão positiva em meio ao caos estabelecido. Até porque, mesmo o pouco já é melhor que nada. E mais uma vez, por mais que a gente peça incansavelmente seu fim e te culpabilizemos por erros nossos, isso tudo não é sobre você.

Querido “doismilevinte”, de qualquer forma, agradeço a oportunidade e lhe retorno em dezembro.

Quem sabe.

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