CRÔNICA

Um dia como qualquer outro

Beatriz Brites27/06/2020 - 16h16
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Voltar pra casa e em segurança faz parte das mais simples e importantes realizações de um dia. Chegar quer dizer vencer. Maria venceu mais uma luta, a diária, pois já enfrentou o cansaço e as poucas horas de sono; descendo o morro ela finalmente chega ao ponto antes do primeiro itinerante passar. Enquanto aguarda, torce que nenhum jovem mal intencionado a encontre, com fome e impulsionado pelo desespero da miséria, e leve o único dinheiro de sua bolsinha, já desgastada ou seu celular comprado depois de tantos anos trabalhando para dona Lurdes. Enquanto finalmente está dentro do ônibus, Maria reza por seus filhos. Naquela mesma semana ouviu sobre a criança atingida por uma bala perdida dentro de casa, Joao Pedro, e pensou consigo “puxa, ele só estava brincando. Era pra ser seu lugar seguro”. Pedrinho ficou em casa, brincando também, logo ele irá pra escola sozinho, “que tudo esteja calmo em seu caminho!”. Observou o trânsito pela janela, agarrou o terço e pediu aos céus, em pensamento, a proteção divina de seus filhos. Logo veio à mente o que disse para o filho mais velho antes de sair de casa:

- Meu filho, você sabe como eles o enxergam, e a culpa não é sua.

– Sim mãe, eu vou tomar cuidado, não vou mais andar de braços cruzados fora de casa, e quando chegarem perto digo que não há nada que os machuquem em meu bolso.

Ao sair pra trabalhar, Carlos era impulsionado todos os dias pela frase de sua mãe “Deus te acompanhe pretin, volta pra nós". Mesmo que agora saiba que existe “pele alva e pele alvo”, como já dizia seu  ídolo Emicida, carregava um sonho: tornar-se engenheiro. Todo dia faz "seus corre" para alcançar o topo, pois disseram que quando chegasse lá, os caras não poderiam mais o alcançar, finalmente estaria seguro. Apesar do medo, ele saiu. O caminho do trabalho tornou-se o campo de batalha, embora já se acostumasse com o cidadão de bem o encarando, mudando de calçada, ou em ser seguido por um segurança. Seu desejo é viver em pele clara. Enquanto caminha se lembra do maldito dia em que viveu na pele, o que apenas ouvia falar sobre os abutres de farda. Aconteceu em uma noite como qualquer outra, depois de sair da universidade eles o pararam, não entendia porque fora tratado como bandido. Repetiu diversas vezes que na mochila eram apenas livros, mas antes de terminar a frase foi jogado ao chão e covardemente espancado. Foi enquadrado no crime. Só neste dia ele se deparou que ser preto causa ódio, e entendeu que, pra alguns, a pele muda tudo. Ouvindo a música de um preto como ele, encontrou refúgio. Aprendeu que quando, finalmente, chegar ao topo nunca mais sentirá medo, ressurgirá como um Ismália – poesia cantada sobre a história de alguém que em cima de uma torre encontrou a liberdade de sua alma, mas seu corpo (igualmente como de um jovem preto) desceu ao mar.

Então o sol se pôs, a família de dona Maria sobreviveu. A recompensa de seu dia foi reencontrar seus filhos. Vivos. Viva mais um dia. Respirem fundo, a luta não foi ganha, pois “a felicidade do preto é quase”.

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